Exportadoras brasileiras começam a se preparar para extinção da Libor
Indicador de referência mais utilizado em contratos de crédito no mundo só poderá ser usado até o fim de 2021; empresas precisam chegar a consenso com importadores sobre qual a melhor taxa disponível para fazer a substituição
BRASÍLIA – Com os dias contados, a Libor movimentará nos próximos meses as grandes exportadoras brasileiras. O fim do indicador de referência mais utilizado em contratos de crédito do mundo e, consequentemente, acompanhado de perto por todos os mercados financeiros foi decretado após a descoberta de um escândalo de manipulação de taxas. Agora, os reguladores e supervisores internacionais incentivam bancos e outras instituições a mudarem seu índice de referência para ferramentas substitutas até o fim do ano que vem.
Com essa alteração, poderá haver mudança na precificação de contratos, valores de ativos nos balanços das companhias, nas operações de hedge (uma espécie de seguro) e também nos modelos de avaliação. No Hemisfério Norte, o assunto está quente, já que se calcula em mais de US$ 400 trilhões em ativos denominados em Libor em todo o planeta em 2018.
A taxa, cuja sigla significa London InterBank Offered Rate, serve como referência de juros que as instituições oferecem para emprestar umas às outras no mercado interbancário internacional no caso de empréstimos de curto prazo. Seu “valor” é baseado em cinco moedas: dólar (Estados Unidos), euro (zona do euro), libra (Reino Unido), iene (Japão) e franco (Suíça).
No Brasil, a avaliação do Banco Central é de que a exposição à Libor no mercado nacional é baixa. “Os efeitos da mudança no padrão Libor no Sistema Financeiro Nacional (SFN) estão sendo acompanhados pelo Banco Central, mas não geram alteração regulatória ou de procedimentos de supervisão”, comentou um porta-voz da autoridade monetária. De acordo com o BC, instrumentos referenciados em Libor no Brasil são basicamente swaps de taxa de juros, que correspondem a 1,4% do total do mercado de derivativos. De forma geral, esses contratos se referem a hedge de exposições em moeda estrangeira.
As companhias brasileiras que têm contratos indexados à Libor, no entanto, terão que se mexer. Pela lei nacional, o sistema de normatização contábil doméstico precisa estar alinhado com as regras internacionais e, segundo o superintendente de normas contábeis e de auditoria da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Paulo Gonçalves, as mudanças já começam a ocorrer no Brasil, seguindo as orientações do Conselho Internacional de Padrões de Contabilidade (IASB, na sigla em inglês). “Já convergimos, no Brasil, à primeira fase e qualquer contrato que tenha como referência essa taxa que deixará de existir terá de passar por uma série de implicações da área contábil”, considerou.
As empresas de capital aberto terão de, pelo menos, apontar as mudanças em seus informes corporativos e demonstração de balanços, algo que não é visto como um problema pela CVM, já que costuma ser uma prática comum das comunicações corporativas.
Gonçalves e o gerente de normas contábeis da autarquia, Osvaldo Favero, explicaram que as empresas deverão dizer, por exemplo, se vão descontinuar esses contratos ou se decidiram substituir o benchmark (referência) por outro ou outros. Nesse caso, é preciso acertar com a outra ponta do contrato a melhor referência, já que nenhum dos lados quer sair perdendo no negócio se a taxa não for exatamente a mesma da Libor. “Informar a mudança é a regra básica da aplicação das normas contábeis. Quando relevantes, precisam ser colocadas nas notas explicativas”, afirmou o superintendente.
As grandes exportadoras, como AmBev, Petrobrás e Vale, por exemplo, são as empresas que potencialmente têm em vigor contratos desse tipo no Brasil.
Discussões sobre mudanças começaram em 2007
As discussões em torno da substituição da Libor começaram em 2007, mas perderam o protagonismo por causa da crise financeira internacional dos anos seguintes.
O benchmark mundial foi colocado em xeque mesmo depois que o Departamento de Justiça americano fez uma investigação criminal no início da década passada sobre uma possível troca de informações entre bancos, que foram acusados de manipular a taxa – ao contrário da Selic brasileira, a Libor é uma referência a partir de um modelo, e não de transações efetivas. Em 2012, a Autoridade de Conduta Financeira (FCA, na sigla em inglês), a CVM britânica, decidiu por uma data final para as operações indexadas à Libor.
Depois da crise financeira internacional, o mundo passa agora pela crise gerada pela pandemia de coronavírus e órgãos reguladores ou de referência internacional, como o Conselho de Estabilidade Financeira (FSB, na sigla em inglês), temem que os players usem o surto como um impeditivo para se prepararem para a mudança. Por isso, vêm batendo na tecla recorrentemente de que as instituições precisam se organizar. Para eles, os bancos não poderão deixar para fazer suas atualizações na última hora alegando o impacto da covid-19 porque o tema vem sendo debatido há anos e há ainda o prazo de mais de um ano para que a Libor deixe de “circular”.
A Associação Internacional de Swaps e Derivativos (Isda, na sigla em inglês) divulgou na semana passada uma cartilha com os protocolos que deverão ser seguidos pelos agentes de mercado. “O FSB incentiva fortemente a ampla e precoce adesão ao Protocolo – por todas as empresas financeiras e não financeiras afetadas – o que será um importante motor de transição para derivativos em todas as moedas Libor e uma etapa crítica na transição de referência antes do final de 2021”, enfatizou a instituição, que tem sede em Basileia, na Suíça. “A transição da Libor é uma prioridade do G-20 e continua sendo uma tarefa essencial que fortalecerá o sistema financeiro global”, continuou, citando a sigla do grupo das 20 maiores economias do mundo, do qual o Brasil faz parte.
“A finalização do Protocolo ISDA é um passo importante para lidar com o estoque de contratos vinculados à Libor antes do final de 2021”, reforçou o presidente do Banco da Inglaterra (BoE, na sigla em inglês) e co-presidente do Official Sector Steering Group, Andrew Bailey.
Agro e energia
Os setores de agronegócio e energia e os contratos em dólar ou de swaps (que negociam câmbio e juros, por exemplo) são os mais afetados pelo fim da Libor no Brasil. Isso porque a maior parte dos contratos que usam essa taxa de referência é feita para proteger exportadores e importadores de mudanças bruscas dos valores das moedas entre os países que fecharam negócio. A extinção do instrumento internacional está marcada para o encerramento de 2021 e é nesse pouco mais de um ano que as empresas terão de se adaptar à nova mecânica dos contratos internacionais.
O principal ponto de partida para as companhias será chegar a um consenso com seus importadores sobre qual a melhor taxa disponível no mercado hoje para substituir a Libor. Nem todas, no entanto, já começaram a fazer as atualizações necessárias. E a postergação é uma das principais preocupações de órgãos reguladores internacionais e vem sendo enfrentada por consultorias de prestação de serviços multinacionais.
No Brasil, a KPMG, conhecida como uma das Big Four do setor, acompanha de perto o desenvolvimento das empresas. O sócio-diretor da companhia no País, Rodrigo Bauce, lembrou que os países e corporações mais afetados pela mudança são os que têm sua moeda na composição da taxa de referência. “Estamos na segunda onda, mas o Brasil é um país exportador, que faz hedge em exposição de juros e câmbio vinculada à Libor. Sem falar em bancos internacionais que aqui operam”, citou. Além disso, segundo ele, há contratos que não estão vinculados à Libor diretamente, mas que usam derivativos a partir da taxa.
As operações domésticas que mais terão impacto são as relacionadas ao dólar por causa dos contratos de hedge, um mecanismo que busca travar o impacto das oscilações cambiais. De acordo com a KPMG, dos US$ 400 trilhões que existem no mundo hoje atrelados de alguma forma à Libor, metade é relacionada à moeda americana. “Se você paga algum empréstimo em dólar, tem a variação da Libor embutida de alguma forma”, considerou Bauce.
O que os clientes mais têm questionado à consultoria, de acordo com o sócio-líder da prática de Accounting & Financial Risk da KPMG no Brasil, Lúcio Anacleto, é em que momento até o final da existência da Libor seria o melhor para desfazer a posição e buscar um substituto. “O cliente quer saber se haverá oportunidade de arbitragem, se a exposição é grande, pequena e o risco que corre”, relatou. A recomendação da empresa depende das informações dos contratos prestadas pelos clientes, mas a sugestão é sanar a questão o quanto antes, não deixando para o prazo final. “Não tem uma receita de bolo, mas tem um feijão com arroz, e sabemos que é importante não deixar para a última hora.”
Os setores que vêm mostrando mais interesse pelo assunto, de acordo com os porta-vozes da KPMG, foram os do setor agrícola e de energia. “Vemos que, no caso de multinacionais, principalmente, pouco se fala no assunto para ver o que a matriz vai determinar, mas não se pode correr o risco. Não dá para esperar o último momento, pois há risco até de reputação”, salientaram. “Não dá para deixar as coisas para os 45 minutos do segundo tempo e esperar a mão mágica do mercado corrigir”, disseram, reforçando a orientação do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB, na sigla em inglês).
BNDES
Mas muitas instituições ainda decidiram aguardar um pouco mais, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Ao Estadão/Broadcast, a instituição informou que ainda está oferecendo financiamentos de comércio exterior atrelados à Libor. “Diante da perspectiva do fim da taxa em âmbito mundial, o Banco, assim como o mercado financeiro global, está aguardando as definições das entidades que regulam o tema, quanto a como se dará o processo de substituição da taxa”, argumentou a empresa.
Já há, no entanto, várias substitutas da Libor no mercado, conhecidas como Taxas Livres de Risco (RFRs), ainda que elas ainda que a mudança global esteja ainda engatinhando. Os reguladores internacionais determinaram que os substitutos serão versões ajustadas das RFRs identificados por atuação no setor público ou privado de cada país, como o AONIA (dólar australiano), CORRA (dólar canadense), € STR (euro), HONIA (dólar de Hong Kong), SARON (Franco suíço), SOFR (dólar americano), SONIA (libras esterlinas) e TONA (ienes). “Hoje, as RFRs começaram a crescer e a Libor a cair um pouco, mas não muito”, salientou Anacleto.
A Petrobrás informou que possui parte de suas dívidas indexadas à Libor. A companhia também explicou que vem monitorando o pronunciamento das autoridades, bem como as medidas que vêm sendo adotadas para a adaptação dos diversos instrumentos financeiros. “Desta forma, a Petrobrás se antecipa às mudanças regulatórias e dos mercados financeiros e se prepara para realizar os eventuais ajustes em contratos, processos e sistemas que venham a ser necessários”, comunicou a companhia. Contatada pela reportagem, a Vale não quis se pronunciar sobre o assunto.
Fonte: O Estadão
Publicado em 28 de outubro de 2020.